terça-feira, 20 de dezembro de 2011

A banalidade do mal


Por Paulo Moreira Leite
da Época

A atitude dos governos europeus diante do sofrimento que a politica de austeridade começa a produzir produzir nos países mais frágeis da União Européia lembra um dos períodos negros da consciência política no Velho Mundo.

Na Grécia, crianças famintas desmaiam nas salas de aula porque passaram vários dias sem comer. Algumas universidades daquele país estão sem aulas há meses. Não há dinheiro para pagar professores, nem para o material didático, nem para o básico.
arcelona, a prefeitura decide racionalizar o uso de papel higiênico nas escolas para conter custos. Na Espanha inteira, o desemprego entre jovens passou dos 40%.
Alguém se escandaliza? Deixando quem vai protestar na rua, manifestando sua raiva e sua impotência, a atitude geral é de silencio e conformismo. A fome das crianças gregas é tão previsível como abrir o chuveiro e aguardar pela queda d’água. O pais foi asfixiado por sucessivos planos de ajuste econômico que trouxeram mais sacrifícios e sofrimentos.
Estamos assistindo a uma nova versão da velha banalidade mal, conceito essencial para entender  o caráter impessoal e burocratizado de boa parte das políticas de Estado em nossa época.
Altos funcionários e executivos despidos de todo sentimento ético e toda solidariedade em relação a outros seres humanos são capazes de cometer atos cruéis e vergonhosos, sem sentirem-se obrigados a refletir sobre as consequências.
Hanna Arendt criou este conceito numa situação extrema — para definir a postura de Adolf Eichmann durante o período nazista. Responsável pela administração da máquina que executou 6 milhões de judeus, o carrasco Eichmann garantiu em seu julgamento que não possuía um ódio especial pelas pessoas que enviou aos campos da morte.
Não era um ”monstro”. Era um funcionário. Considerava que, cumprindo seu dever naquele posto que lhe fora designado, estava contribuindo para o bem do país e para sua carreira. Eichmann negava que tivesse uma motivação perversa. Por isso, disse em seu julgamento, devia ser considerado inocente das acusações que lhe eram feitas. Nem era anti-semita, declarou. Essa argumentação traduziu a “banalidade do mal”.
E ajuda a pensar sobre a postura que homens e mulheres em posições de responsabilidade podem assumir em suas épocas, quando deixam de levar em consideração a condição humana.
Além de eliminar judeus em campos de concentração, o nazismo escravizou boa parte da população da Europa Central para trabalhar como mão-de-obra gratuita na industria de guerra. Num país ocupado por tropas alemãs, 200 000 gregos morreram de fome.
Não há portanto comparação possível entre a ditadura nazista e os governos democráticos de hoje. Vivemos em outro mundo. Os governantes são eleitos e a liberdade atinge um patamar inédito na história do Ocidente.
Mas a banalidade do mal reaparece, ainda que seja em outro contexto. E, mais uma vez, ela expressa o esforço de quem pratica atos socialmente cruéis mas se esforça para eximir-se de toda responsabilidade. E, não por acaso, sua existência ganha músculos em regimes onde a democracia é ultrapassada — o que acontece quando a população não é autorizada a dar sua opinião sobre questões fundamentais de sua existencia, como a política econômica.
Deixando de lado o blá-blá-blá da perseverança que se tornou o discurso oficial dos governantes europeus, a politica de austeridade ameaça jogar o Continente numa situação de desespero profundo, onde a fome das crianças gregas é só o exemplo mais visível de uma tragédia bem maior.
Calouros de política econômica sabem muito bem o que acontece quando um governo força o corte de gastos públicos, não estimula o consumo nem a criação de empregos. É o caminho mais rápido para transformar a região mais rica do planeta, com PIB de 16 trilhões de dólares, no cemitério do mais equilibrado sistema de bem-estar social.
Analista econômico com todas as credenciais de quem é advogado da economia de mercado, Martin Wolf, principal editor do Financial Times, define a política da União Européia como “recessão estrutural”. Com isso, ele quer dizer que o Velho Mundo está sendo levado para um programa de depressão economica de longo prazo, que irá reduzir salários, cortar programas sociais e regressão em toda linha, sem apontar nada no fim do túnel.
Pergunte-se aos governantes e tecnocrataas da Europa qual sua responsabilidade pelo que está ocorrendo com as crianças gregas, com os jovens espanhóis, com os italianos à beira da falencia.  Nenhuma. Não tem culpa de nada. A maioria não tem religião, o que costuma livrar muitas pessoas de sentirem incômodos de consciencia. Ninguém se sente responsável. Não são monstros. São pessoas normais.

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